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20 de Maio de 2024

Sociedade e Sociabilidade Segundo Georg Simmel

Publicado por Glalber Queiroz
há 8 anos

A sociedade, conforme Georg Simmel[1] (2006) demonstra, emerge a partir da formação de uma complexa rede de interação entre indivíduos, impulsionada por diversas motivações como paixão e desejo, que são exemplos do que esse berlinense atribui como constituintes das matérias e conteúdos da vida social. Portanto, na essência, a sociedade se decorre de um emaranhado de ações e reações, desenvolvidas no cotidiano das diversas formas e conteúdos das relações sociais.

Logo, a sociedade é estabelecida como o produto das manifestações de contato social, na medida em que “os indivíduos estão ligados uns aos outros pela influência mútua que exercem entre si pela determinação recíproca que exercem uns sobre os outros” (SIMMEL, 2006, p.17).

A constante troca de influencias entre os indivíduos ocorre em virtude das experiências vividas no cotidiano e se manifesta por diversas razões e motivações. É o elemento fundamental que concebe a formação de uma sociedade.

Segundo o pensamento de Simmel, “o mundo social pode ser considerado a partir de diversos ângulos e enfoques à medida que envolve um encadeamento de ações que se relacionam” (PERES, 2011, p. 97), em virtude das inúmeras formas e conteúdos que constituem os elementos da vida social.

Instintos eróticos, interesses objetivos, impulsos religiosos, objetivos de defesa, ataque, jogo, conquista, ajuda, doutrinação e inúmeros outras situações fazem com que o ser humano entre, com os outros, em uma relação de convívio, de atuação com referência ao outro, com o outro e contra o outro, em um estado de correlação com os outros. Isso quer dizer que ele exerce efeito sobre os demais e também sofre efeitos por parte deles. Essas interações significam que os portadores individuais daqueles impulsos e finalidades formam uma unidade – mais exatamente, uma sociedade (SIMMEL, 2006, p. 60).

Não obstante muitas dessas manifestações relacionais possuírem conteúdo de caráter conflituoso, em razão da colisão de interesses individuais, Simmel interpreta a disputa como fator positivo para todo o corpo social, na proporção em que tal situação seja dirimida mediante acordo, pois significaria a sofisticação da consciência do individuo como parte integrante de uma unidade coletiva.

Sendo o interagir social entre indivíduos um processo que marca o ponto fundamental de uma sociedade, são as mútuas ações e reações entre os seres humanos em decorrência de sua existência física em determinado momento e território que permitem afirmar que há a plena configuração de uma sociedade.

Assim, pode-se dizer que “sempre que houver indivíduos que se encontrem em reciprocidade de ação – seja ela permanente ou passageira, seja ela com, contra ou pelos outros, pode-se falar em sociedade” (PERES, 2011, p. 99). Desse modo, a intensidade da interação entre os indivíduos que compõem o grupo é diretamente proporcional à caracterização de uma unidade social, ou seja, quanto mais vigorosa a interação entre o grupo, mais ele se constitui em uma sociedade.

Para o pensamento simmeliano, as manifestações sociais reciprocamente estabelecidas compreendem a essência de uma sociedade, em um processo de constante construção, desconstrução e reconstrução (PERES, 2011, p. 98). Seguindo essa premissa, o termo sociação[2] é estabelecido por Simmel para definir um processo que começa a existir a partir do momento em que os indivíduos passam a interagir e a adotar sistemas de cooperação e colaboração, mesmo que seu conteúdo careça de um caráter social caso considerado isoladamente.

A sociação é, portanto, a forma (que se realiza de inúmeras maneiras distintas) na qual os indivíduos, em razão de seus interesses – sensoriais, ideais, momentâneos, duradouros, conscientes, inconscientes, movidos pela causalidade ou teleologicamente determinados, se desenvolvem conjuntamente em direção a uma unidade no seio da qual esses interesses se realizam. Esses interesses sejam eles sensoriais, ideais, momentâneos, duradouros, conscientes, inconscientes, causais ou teleológicos, formam a base da sociedade humana. (Simmel, 2006, p. 60).

Enquanto processo fundamental da constituição de uma sociedade, a sociação pode ser compreendida como aquilo que tem a capacidade de propiciar a emissão ou recepção, tanto de uma ação física quanto da influência exercida por outro individuo. Para Simmel, a sociação comporta uma distinção entre forma e conteúdo, sendo que este é constituído dos elementos intrínsecos aos seres humanos que os tornam capazes de se relacionar com seus semelhantes por interesse ou motivação. Em outras palavras, conteúdo e matéria da sociação é “tudo o que existe nos indivíduos e nos lugares concretos de toda realidade histórica (...) tudo o que está presente nele de modo a engendrar ou mediatizar os efeitos sobre os outros, ou a receber esses efeitos dos outros” (Simmel, 2006, p.60).

Esses elementos fundados em interesses e motivações dos indivíduos, assim como já dito, se considerados isoladamente não possuem caráter social, pois que apenas se estabelecem como elementos da sociação a partir do momento em que podem ser definidos como meio de interação que estabelece um elo entre ambos os agentes da relação social.

Mas as motivações, impulsos e interesses, só constituem os elementos do fenômeno da sociação quando idôneo a ensejar a formação de uma sociedade, no instante em que torna possível a interação entre os indivíduos e oportuniza a transformação de um aglomerado de pessoas isoladas em “formas de estar com o outro e de ser para o outro”, nas quais os indivíduos vão se vincular e influir uns sobre os outros. (PERES, 2011, p. 102).

No entanto, Simmel verifica que os conteúdos da vida social se tornam autônomos e indissociáveis do “objeto que formaram exclusivamente para seu próprio funcionamento e realização” (2006, p. 61). Ocorre que as formas do material que tomamos do mundo são elaboradas com arrimo em condições e necessidades práticas. A partir daí, em virtude de determinados propósitos, é dado a este material determinada forma que por sua vez é utilizada como elementos da vida social.

Porém, certos conteúdos da vida social perdem seu uso prático habitual e se libertam, em determinada medida, do serviço à vida que originariamente estava vinculado, passando então a se tornar autônomo e a possuir um valor em si mesmo “e não em função da legitimação de outra instância superior e extrínseca que ditaria como se deve formar a matéria da vida” (SIMMEL, 2006, p. 62).

O que é autenticamente “social” nessa existência é aquele ser com, para e contra os quais os conteúdos ou interesses materiais experimentam uma forma ou um fomento por meio de impulsos ou finalidades. Essas formas adquirem então, puramente por si mesmas e por esse estímulo que delas irradia a partir dessa liberação, uma vida própria, um exercício livre de todos os conteúdos materiais; esse é justamente o fenômeno da sociabilidade. (SIMMEL, 2006, p. 64).

Definida por Simmel como sendo a “forma lúdica da sociação”, a sociabilidade por sua vez é a forma pela qual os indivíduos constituem uma unidade no intuito de satisfazer seus interesses, onde forma e conteúdo são na experiência concreta processos indissociáveis (Simmel, 2006, p. 65). Enquanto que no processo que constitui a sociação as formas assumidas pelos elementos constitutivos da vida social acarretam na determinação da forma em razão do conteúdo, no fenômeno da sociabilidade a forma constitui seu próprio conteúdo, com finalidade em si mesmo.

O ponto fundamental não é o objetivo pelo qual o grupo se forma, mas o interesse e o prazer embutido na própria união social dos indivíduos; o sentimento de pertencimento a determinado grupo, não importa o objetivo de seu agrupamento.

Presente em situações tão diversas quanto “reuniões econômicas, irmandades de sangue, comunidades religiosas, bandos de bandidos”, que apesar de motivações e interesses distintos, bem como conteúdos específicos, guardam a semelhança fundamental da sociabilidade, pois “todas essas formas de sociação são acompanhadas por um sentimento e por uma satisfação de estar justamente socializado, pelo valor da sociedade enquanto tal” (SIMMEL, 2006, p.64).

Determinadas experiências da vida cotidiana podem ser apontadas como exemplos por excelência do que Simmel descreve por sociabilidade: “Sair, jogar conversa fora, namorar, encontrar com os amigos, em geral, não têm outro fim principal senão o prazer e o sentimento de estar junto e de ‘praticar’ a própria sociação” (PERES, 2011, p. 105).

Wacquant (2002) desvela um exemplo sobre uma das maneiras em que a sociabilidade se expressa no interior de um centro de treinamento de boxeadores localizado na Cidade estadunidense de Chicago nos anos 1980, ao longo de sua busca pela compreensão do emaranhado das relações sociais e construções simbólicas lá surgidas:

Escudo protetor contra as tentações e os riscos da rua, a academia de boxe não apenas é o local de um exercício rigoroso do corpo; ela também é suporte do que Georg Simmel chamou de “sociabilidade” (Geselligkeit), esses processos puros de associação que têm seu fim neles mesmo, essas formas de interação social no limite desprovidas de conteúdo ou dotadas de conteúdos socialmente anódinos. (...). Tudo se passa, de fato, como se um pacto de não agressão governasse as relações interpessoais e excluísse da conversa todo o tema “sério”, capaz de atentar contra essa “forma lúdica de socialização” (...). (WACQUANT, 2002, p. 56).

O jogo erótico presente na coqueteria é exposto por Simmel como “realização mais leve, lúdica, e também a mais ampla” da sociabilidade (2006, p. 72). Coquete é a pessoa que empreende esforços para despertar a admiração e o interesse alheios, que se utiliza de excessivo cuidado quanto a sua forma física, estética e demais apetrechos ornamentais. O exercício de seu poder de atração erótico não guarda a verdadeira pretensão de consumar o ato insinuado, oscilando seu comportamento entre o sim e o não, sem uma definição quanto a seu real interesse.

A coqueteria é explicada por Simmel como “o jogo da ironia e do gracejo com o qual o elemento erótico ao mesmo tempo desata os puros esquemas de suas interações de seu conteúdo material ou totalmente individual” (2006, p. 74). Há alternância entre indícios de atração e repúdio nas encenações que constituem os atos típicos de sedução, sem chegar a uma decisão definitiva, que mantem presentes as condições pró e contra a consumação das expectativas produzidas no agente seduzido.

Segundo Simmel, “assim como a sociabilidade joga com as formas da sociedade, a coqueteria joga com as formas do erotismo – uma afinidade de essências que de certa maneira predestina a coqueteria a ser um elemento da sociabilidade” (SIMMEL, 2006, p. 74).

Na sociabilidade há um processo que a torna um fim em si mesmo. Forma e conteúdo se fundem e se definem, constituindo um fenômeno social que prescinde de uma razão, interesse ou motivação extrínseca para sua ocorrência no interagir entre os indivíduos.

NOTAS:

[1] PERES et al (2011, p. 94) destaca que apesar de não ser atribuído a Simmel o mesmo prestígio dado a seus contemporâneos Marx, Durkheim e Weber, sua obra “a filosofia do dinheiro”, de 1900, merece reconhecimento como uma das principais obras que deram base ao pensamento sociológico.

[2] Em alemão “Vergesellschaftung” tradicionalmente traduzido para o idioma português como “sociação” (PERES, 2011, p. 98).

REERÊNCIAS:

PERES, Fabio de Faria et al. A ‘sensibilidade’ de Simmel: notas e contribuições ao estudo das emoções. RBSE 10 (28): 93-120, ISSN 1676-8965, abril de 2011.

SIMMEL, Georg. (2006). Questões fundamentais de sociologia: individuo e sociedade. Tradutor Pedro Caldas. Rio de Janeiro: Zahar.

WACQUANT, Loic. (2002). Corpo e alma: notas etnográficas de um aprendiz de boxe. Trad. Angela Ramalho. Rio de Janeiro: Relume Dumará.]

Glalber Queiroz é Mestre em Segurança Pública, Especialista em Direito Público e Graduado em Direito. E-mail: glalberqueiroz@gmail.com

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